Publicado em http://7leitores.blogspot.com/2009/10/rainha-do-cine-roma_20.html
Pepetela afirma a pópósito:
"Quem tiver peito fraco é melhor nao tocar neste livro Porque ele é duro, cru, verdadeiro No entanto, no fim, fica um fiozinho de açúcar, emoldurando uma réstea de esperança."
De facto, "A rainha do Cine Roma" é um mergulho no lado mais negro da humanidade. salvador da Baía, prostituição infantil, álcool, droga, roubo, violência, estupro, transexualidade, corrupção dos que mandam, miséria levada até ao extremo, abandono, tremenda solidão.
Sabemos que o autor, mexicano a viver no Brasil, faz trabalho social com crianças e meninos de rua
Todo o livro, que é uma espécie de "Capiães da areia" do tempo do crack, ferve, amachuca-nos, arrepia-nos, faz-nos conviver dificilmente, dolorosamente, com uma realidade assustadora.
O Pepetela tem mesmo razão: "Quem tiver peito fraco..." No entanto, como também ele diz, ao lado da desesperança mais completa há sempre um fio de humanidade, uma luzinha ao fundo do túnel, a perspectiva positiva deixada por um escritor que acredita que, apesar de tudo, a vida ainda vale a pena e todos temos uma reserva de generosidade que pode sair cá para fora até nas piores circunstâncias.
É claro que o autor tem tanta e tão suja realidade para verter na sua escrita, que por vezes se esquece de se vigiar e de se conter. Repete-se, torna-se previsívelm aqui e ali, quase melodramático. No entanto, pergunto-me eu se é possível fugir às teias do melodrama quando tratamos da miséria moral absoluta, essa miséria que sustentou o desencolvimento desse estilo literário que teve seguidores tão respeitáveis como Zola ou Vítor Hugo.
Afinal, 150 anos depois, o capitalismo, na sua versão neo-liberal, mantém grandes bolsas de miséria pelo mundo fora e, por mais que se negue o papel da literatura na denúncia dessa miséria, os que como Reyes contactam com ela e tentam salvar dela alguns seres humanos, têm todo o direito e, se calhar, têm todo o dever de fazer da literatura um campo de batalha onde se luta por um mundo um poucochinho melhor.
A ternura e a solidariedade que o romance nos oferece ou nos promete é uma janela aberta, uma janela bem mais habitável que o retrato horrível que da Índia nos dá, por exemplo, em "O Tigre Branco", o premiado escritor indiano Aravid Adiga, onde parece não haver qualquer resto de esperança na humanidade.
20 de outubro de 2009
10 de outubro de 2009
As vidas sem muros em ruas fortificadas
Publicado no Jornal A Tarde (mais temporada de patos)
“Tá, rapaz, calma, você não agüenta nada, não é só porque eu estou enchendo seu saco que você vai fechar o livro! O que acontece é que nós somos todos uma bosta, eu, você, o mundo todo, e se você não entende isso, você não tá com nada.”
Quem fala é Betinho, o narrador do romance A rainha do Cine Roma do mexicano-‘baiano’ Alejandro Reyes, finalista do prêmio Leya e publicado em Portugal pela Oficina do Livro. Ao longo do livro, Betinho, jovem morador das ruas de Salvador, interpela o leitor e o sacode do seu conforto, envolvendo-o diretamente nos dilemas éticos e existenciais, enquanto conta (com raiva, com ironia, com humor, com desespero, com ternura) a sua própria história e a de Maria Aparecida, também menina que vive na rua. A violência, o desamparo, o abuso sexual, a fome, as drogas, a prostituição, o desespero – e também o amor, a esperança e a dignidade – cobram vida nessas e noutras personagens das ruas, das favelas e do submundo da noite de uma cidade do Salvador que se transforma, ela própria, em personagem.
Seria fácil dizer que o romance é “um retrato da realidade como ela é”: a denúncia de um mundo fraturado pela desigualdade e o desvendamento de um universo ignorado. Mas o próprio Betinho desmancha a noção de verdade e a própria capacidade de narrar a realidade alheia: “Sei lá se o que vou contar aqui é verdade, vai ver que não foi nada disso, vai ver que não sei coisa nenhuma e não deveria nem estar falando”. O questionamento é duplamente interessante se considerarmos que o autor (que se apropria da voz de Betinho para falar desse mundo), não só não é menino de rua: não é brasileiro e nem mesmo o português é sua língua materna.
Assim, o autor desconstrói de antemão a tentação de uma leitura fácil como um romance de denúncia social ou de preocupação etnográfica, desafiando, desmanchando e repensando fronteiras com o fazer literário. O romance é, em muitos sentidos, um livro justamente sobre fronteiras. As fronteiras da linguagem (a escolha de um narrador de rua implica numa linguagem dura, colorida, cadenciosa, cheia de gíria e da inventividade popular). As fronteiras de gênero, onde a sexualidade se manifesta numa subversão constante das categorias estabelecidas (um ponto fundamental no romance é a exploração sensível da manifestação do desejo, da sexualidade e do amor fora dos padrões e a fluidez das categorias de gênero). As fronteiras raciais, sempre presentes por baixo da aparente malemolência da suposta democracia racial. E as fronteiras de classe. São estas últimas as que, no romance, se manifestam menos permeáveis, fraturas quase intransponíveis pelos personagens que, quando tentam atravessá-las, iniciam uma queda vertiginosa de decadência.
Título: A rainha do Cine Roma
Autor: Alejandro Reyes
Editora: Oficina do Livro
Preço: 13.50 euros
[1] Doutora em Literatura Brasileira e professora da UFBA.
Publicado no jornal A tarde, 26/09/2009
Milena Britto[1]
“Tá, rapaz, calma, você não agüenta nada, não é só porque eu estou enchendo seu saco que você vai fechar o livro! O que acontece é que nós somos todos uma bosta, eu, você, o mundo todo, e se você não entende isso, você não tá com nada.”
Quem fala é Betinho, o narrador do romance A rainha do Cine Roma do mexicano-‘baiano’ Alejandro Reyes, finalista do prêmio Leya e publicado em Portugal pela Oficina do Livro. Ao longo do livro, Betinho, jovem morador das ruas de Salvador, interpela o leitor e o sacode do seu conforto, envolvendo-o diretamente nos dilemas éticos e existenciais, enquanto conta (com raiva, com ironia, com humor, com desespero, com ternura) a sua própria história e a de Maria Aparecida, também menina que vive na rua. A violência, o desamparo, o abuso sexual, a fome, as drogas, a prostituição, o desespero – e também o amor, a esperança e a dignidade – cobram vida nessas e noutras personagens das ruas, das favelas e do submundo da noite de uma cidade do Salvador que se transforma, ela própria, em personagem.
Seria fácil dizer que o romance é “um retrato da realidade como ela é”: a denúncia de um mundo fraturado pela desigualdade e o desvendamento de um universo ignorado. Mas o próprio Betinho desmancha a noção de verdade e a própria capacidade de narrar a realidade alheia: “Sei lá se o que vou contar aqui é verdade, vai ver que não foi nada disso, vai ver que não sei coisa nenhuma e não deveria nem estar falando”. O questionamento é duplamente interessante se considerarmos que o autor (que se apropria da voz de Betinho para falar desse mundo), não só não é menino de rua: não é brasileiro e nem mesmo o português é sua língua materna.
Assim, o autor desconstrói de antemão a tentação de uma leitura fácil como um romance de denúncia social ou de preocupação etnográfica, desafiando, desmanchando e repensando fronteiras com o fazer literário. O romance é, em muitos sentidos, um livro justamente sobre fronteiras. As fronteiras da linguagem (a escolha de um narrador de rua implica numa linguagem dura, colorida, cadenciosa, cheia de gíria e da inventividade popular). As fronteiras de gênero, onde a sexualidade se manifesta numa subversão constante das categorias estabelecidas (um ponto fundamental no romance é a exploração sensível da manifestação do desejo, da sexualidade e do amor fora dos padrões e a fluidez das categorias de gênero). As fronteiras raciais, sempre presentes por baixo da aparente malemolência da suposta democracia racial. E as fronteiras de classe. São estas últimas as que, no romance, se manifestam menos permeáveis, fraturas quase intransponíveis pelos personagens que, quando tentam atravessá-las, iniciam uma queda vertiginosa de decadência.
Título: A rainha do Cine Roma
Autor: Alejandro Reyes
Editora: Oficina do Livro
Preço: 13.50 euros
[1] Doutora em Literatura Brasileira e professora da UFBA.
Publicado no jornal A tarde, 26/09/2009
26 de setembro de 2009
7 de setembro de 2009
A Rainha do Cine Roma: o drama dos meninos de rua do Brasil
Publicado em: Anjos e Guerreiros
“A Rainha do Cine Roma”, do mexicano Alejandro Reyes, da editora Oficina do Livro, comprova até onde a desgraça humana pode chegar.
Numa Salvador da Baía que de turística não tem nada, vivemos a dura realidade dos meninos de rua do Brasil. O livro foi finalista do Prêmio Leya.
O escritor angolano Pepetela, que fez parte do júri do Prêmio Leya, deixa o recado para o eventual leitor de “A Rainha do Cine Roma”: “Quem tiver peito fraco, é melhor não tocar neste livro. Porque ele é duro, cru, verdadeiro”. A realidade aqui não é portanto uma metáfora, pelo contrário, é apresentada sem subterfúgios e sem medo das palavras.
Alejandro Reyes, natural do México, morou nove anos em Salvador da Baía, no Brasil. Para contar a história dos meninos de rua conviveu alguns meses com os mesmos. E é essa vivência que o mexicano nos dá a conhecer pela voz de um dos protagonistas de “A Rainha do Cine Roma”, Betinho, o narrador da história, um narrador que por diversas vezes nos interpela ao longo da narrativa, procurando assim nos aproximar do seu drama.
Betinho, homossexual assumido, é a voz das ruas de Salvador, uma voz que não segreda nada, pelo contrário, é uma voz que grita o terror de uma vida no mínimo indigna, uma vida que coloca constantemente Deus em xeque.
Prostituição infantil, drogas, exploração sexual, pedofilia, pais que violam filhas, filhas que terminam com as vidas dos pais. Os horrores são inúmeros e Reyes não poupa ninguém, revelando um drama que para muitos é completamente desconhecido, mas infelizmente bastante real para a dignidade humana.
Betinho apaixona-se por Maria Aparecida e juntos têm uma relação de irmãos, amigos, namorados e amantes. É através dos dois que sabemos como é a vida dos meninos de rua do Brasil; é através deles que Alejandro Reyes constrói o seu romance, que tem a particularidade de ser escrito como se estivéssemos em plena Salvador, já que o mexicano resolveu escrever o seu livro utilizando a linguagem que os meninos de rua utilizam no seu dia a dia.
“A Rainha do Cine Roma” tem como principal problema os sucessivos infortúnios de Betinho e Maria Aparecida, que acabam por sofrer na pele as várias histórias que Reyes teve conhecimento quando fez o seu trabalho de campo. Em diversos momentos a esperança de uma vida melhor esvai-se e isso acaba por retirar ritmo ao livro. Mas esse pormenor não retira mérito a obra, pelo contrário. Antes de tudo Reyes pretendeu mostrar o drama dos meninos de rua. E conseguiu, sem dúvida, mostrando ao mesmo tempo que a indiferença não pode continuar.
4 de agosto de 2009
Retrato da rua sem anestesia
Publicado em TimeOut Lisboa
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