20 de outubro de 2009

7 Leitores: A Rainha do Cine Roma

Publicado em http://7leitores.blogspot.com/2009/10/rainha-do-cine-roma_20.html


Pepetela afirma a pópósito:

"Quem tiver peito fraco é melhor nao tocar neste livro Porque ele é duro, cru, verdadeiro No entanto, no fim, fica um fiozinho de açúcar, emoldurando uma réstea de esperança."

De facto, "A rainha do Cine Roma" é um mergulho no lado mais negro da humanidade. salvador da Baía, prostituição infantil, álcool, droga, roubo, violência, estupro, transexualidade, corrupção dos que mandam, miséria levada até ao extremo, abandono, tremenda solidão.

Sabemos que o autor, mexicano a viver no Brasil, faz trabalho social com crianças e meninos de rua

Todo o livro, que é uma espécie de "Capiães da areia" do tempo do crack, ferve, amachuca-nos, arrepia-nos, faz-nos conviver dificilmente, dolorosamente, com uma realidade assustadora.

O Pepetela tem mesmo razão: "Quem tiver peito fraco..." No entanto, como também ele diz, ao lado da desesperança mais completa há sempre um fio de humanidade, uma luzinha ao fundo do túnel, a perspectiva positiva deixada por um escritor que acredita que, apesar de tudo, a vida ainda vale a pena e todos temos uma reserva de generosidade que pode sair cá para fora até nas piores circunstâncias.

É claro que o autor tem tanta e tão suja realidade para verter na sua escrita, que por vezes se esquece de se vigiar e de se conter. Repete-se, torna-se previsívelm aqui e ali, quase melodramático. No entanto, pergunto-me eu se é possível fugir às teias do melodrama quando tratamos da miséria moral absoluta, essa miséria que sustentou o desencolvimento desse estilo literário que teve seguidores tão respeitáveis como Zola ou Vítor Hugo.

Afinal, 150 anos depois, o capitalismo, na sua versão neo-liberal, mantém grandes bolsas de miséria pelo mundo fora e, por mais que se negue o papel da literatura na denúncia dessa miséria, os que como Reyes contactam com ela e tentam salvar dela alguns seres humanos, têm todo o direito e, se calhar, têm todo o dever de fazer da literatura um campo de batalha onde se luta por um mundo um poucochinho melhor.

A ternura e a solidariedade que o romance nos oferece ou nos promete é uma janela aberta, uma janela bem mais habitável que o retrato horrível que da Índia nos dá, por exemplo, em "O Tigre Branco", o premiado escritor indiano Aravid Adiga, onde parece não haver qualquer resto de esperança na humanidade.

10 de outubro de 2009

As vidas sem muros em ruas fortificadas

Publicado no Jornal A Tarde (mais temporada de patos)





Milena Britto[1]

“Tá, rapaz, calma, você não agüenta nada, não é só porque eu estou enchendo seu saco que você vai fechar o livro! O que acontece é que nós somos todos uma bosta, eu, você, o mundo todo, e se você não entende isso, você não tá com nada.”

Quem fala é Betinho, o narrador do romance A rainha do Cine Roma do mexicano-‘baiano’ Alejandro Reyes, finalista do prêmio Leya e publicado em Portugal pela Oficina do Livro. Ao longo do livro, Betinho, jovem morador das ruas de Salvador, interpela o leitor e o sacode do seu conforto, envolvendo-o diretamente nos dilemas éticos e existenciais, enquanto conta (com raiva, com ironia, com humor, com desespero, com ternura) a sua própria história e a de Maria Aparecida, também menina que vive na rua. A violência, o desamparo, o abuso sexual, a fome, as drogas, a prostituição, o desespero – e também o amor, a esperança e a dignidade – cobram vida nessas e noutras personagens das ruas, das favelas e do submundo da noite de uma cidade do Salvador que se transforma, ela própria, em personagem.

Seria fácil dizer que o romance é “um retrato da realidade como ela é”: a denúncia de um mundo fraturado pela desigualdade e o desvendamento de um universo ignorado. Mas o próprio Betinho desmancha a noção de verdade e a própria capacidade de narrar a realidade alheia: “Sei lá se o que vou contar aqui é verdade, vai ver que não foi nada disso, vai ver que não sei coisa nenhuma e não deveria nem estar falando”. O questionamento é duplamente interessante se considerarmos que o autor (que se apropria da voz de Betinho para falar desse mundo), não só não é menino de rua: não é brasileiro e nem mesmo o português é sua língua materna.

Assim, o autor desconstrói de antemão a tentação de uma leitura fácil como um romance de denúncia social ou de preocupação etnográfica, desafiando, desmanchando e repensando fronteiras com o fazer literário. O romance é, em muitos sentidos, um livro justamente sobre fronteiras. As fronteiras da linguagem (a escolha de um narrador de rua implica numa linguagem dura, colorida, cadenciosa, cheia de gíria e da inventividade popular). As fronteiras de gênero, onde a sexualidade se manifesta numa subversão constante das categorias estabelecidas (um ponto fundamental no romance é a exploração sensível da manifestação do desejo, da sexualidade e do amor fora dos padrões e a fluidez das categorias de gênero). As fronteiras raciais, sempre presentes por baixo da aparente malemolência da suposta democracia racial. E as fronteiras de classe. São estas últimas as que, no romance, se manifestam menos permeáveis, fraturas quase intransponíveis pelos personagens que, quando tentam atravessá-las, iniciam uma queda vertiginosa de decadência.

Título: A rainha do Cine Roma
Autor: Alejandro Reyes
Editora: Oficina do Livro
Preço: 13.50 euros

[1] Doutora em Literatura Brasileira e professora da UFBA.

Publicado no jornal A tarde, 26/09/2009

7 de setembro de 2009

A Rainha do Cine Roma: o drama dos meninos de rua do Brasil

Publicado em: Anjos e Guerreiros


“A Rainha do Cine Roma”, do mexicano Alejandro Reyes, da editora Oficina do Livro, comprova até onde a desgraça humana pode chegar.
Numa Salvador da Baía que de turística não tem nada, vivemos a dura realidade dos meninos de rua do Brasil. O livro foi finalista do Prêmio Leya.

O escritor angolano Pepetela, que fez parte do júri do Prêmio Leya, deixa o recado para o eventual leitor de “A Rainha do Cine Roma”: “Quem tiver peito fraco, é melhor não tocar neste livro. Porque ele é duro, cru, verdadeiro”. A realidade aqui não é portanto uma metáfora, pelo contrário, é apresentada sem subterfúgios e sem medo das palavras.

Alejandro Reyes, natural do México, morou nove anos em Salvador da Baía, no Brasil. Para contar a história dos meninos de rua conviveu alguns meses com os mesmos. E é essa vivência que o mexicano nos dá a conhecer pela voz de um dos protagonistas de “A Rainha do Cine Roma”, Betinho, o narrador da história, um narrador que por diversas vezes nos interpela ao longo da narrativa, procurando assim nos aproximar do seu drama.

Betinho, homossexual assumido, é a voz das ruas de Salvador, uma voz que não segreda nada, pelo contrário, é uma voz que grita o terror de uma vida no mínimo indigna, uma vida que coloca constantemente Deus em xeque.

Prostituição infantil, drogas, exploração sexual, pedofilia, pais que violam filhas, filhas que terminam com as vidas dos pais. Os horrores são inúmeros e Reyes não poupa ninguém, revelando um drama que para muitos é completamente desconhecido, mas infelizmente bastante real para a dignidade humana.
Betinho apaixona-se por Maria Aparecida e juntos têm uma relação de irmãos, amigos, namorados e amantes. É através dos dois que sabemos como é a vida dos meninos de rua do Brasil; é através deles que Alejandro Reyes constrói o seu romance, que tem a particularidade de ser escrito como se estivéssemos em plena Salvador, já que o mexicano resolveu escrever o seu livro utilizando a linguagem que os meninos de rua utilizam no seu dia a dia.

“A Rainha do Cine Roma” tem como principal problema os sucessivos infortúnios de Betinho e Maria Aparecida, que acabam por sofrer na pele as várias histórias que Reyes teve conhecimento quando fez o seu trabalho de campo. Em diversos momentos a esperança de uma vida melhor esvai-se e isso acaba por retirar ritmo ao livro. Mas esse pormenor não retira mérito a obra, pelo contrário. Antes de tudo Reyes pretendeu mostrar o drama dos meninos de rua. E conseguiu, sem dúvida, mostrando ao mesmo tempo que a indiferença não pode continuar.

4 de agosto de 2009

Retrato da rua sem anestesia



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Retrato da rua sem anestesia


Pepetela chamou-lhe um livro “duro, cru, verdadeiro”, impróprio para peitos fracos. Estava a falar de A Rainha do Cine Roma, primeiro romance de Alejandro Reyes e um retrato de dois meninos de rua no Brasil. Ana Dias Ferreira falou com o autor
 

Pepetela chamou-lhe um livro “duro, cru, verdadeiro”, impróprio para peitos fracos. Estava a falar de A Rainha do Cine Roma, primeiro romance de Alejandro Reyes e um retrato de dois meninos de rua no Brasil. Ana Dias Ferreira falou com o autor Alejandro Reyes, natural do México, morou nove anos em Salvador da Baía, no Brasil. Num deles, enquanto carburava num primeiro romance, o jornalista mergulhou na noite e nas ruas, apanhando o calão, as asneiras e as histórias – quase todas horríveis – das pessoas que ia encontrando. Nessa altura, Reyes já trabalhava com organizações de assistência social a meninos de rua, e lá pelo meio decidiu: o seu livro tinha de ser escrito pelo ponto de vista de um desses meninos. Chamou-lhe A Rainha do Cine Roma.
O romance, que chega a Portugal através da Oficina do Livro e foi finalista ao Prémio Leya, é um retrato duro e ao mesmo tempo comovente de duas crianças sem tecto: Betinho, o narrador, e Maria Aparecida. Entre os muitos temas tratados está a prostituição infantil, a homossexualidade e Deus.
Qual a história mais chocante que conheceu no Brasil?
Foram tantas… No romance há uma menina, a Perereca, que está cadavérica e acabada com crack, e ela é inspirada numa criança que conheci de facto, um menino de rua de quem me tornei amigo. Eu deixei de frequentar o centro da cidade durante um ano e quando voltei ele estava assim, não me reconhecia, estava cadavérico do vício da droga, andava correndo atrás dos turistas procurando dinheiro, não era mais ele. Outro aspecto da personagem Perereca, quando ela é violentada por dois polícias porque não quer fazer sexo oral de graça, também é uma história que escutei nas ruas. Há outras muito duras de crianças que fogem. Uma menina me contava que fugiu de casa aos seis anos porque o pai a violentava. E eu ficava tentando imaginar como é que aos seis anos a gente pode fazer uma decisão deste tamanho.

Nota-se que o livro é escrito por alguém que esteve no meio dessa realidade. É por isso que ele é tão real e tão duro?
Quando comecei a escrever o romance, um dos grandes desafios era como aproximar o leitor desta realidade. Passei um mês a tentar escrever o primeiro capítulo, a tentar achar uma voz narrativa. Finalmente, decidi ir por um caminho bastante difícil: ser um dos meninos de rua, o Betinho, o narrador. Portanto, o livro tinha de conter muito dessa linguagem de rua, muito mais dura e com a qual eu não cresci. Havia um desafio linguístico, e para poder incorporar essa linguagem passei muitos dias e noites caminhando pelas ruas e falando com as pessoas.

O narrador conta a história mas também interpela o leitor.
Há uma cena, quando a Maria Aparecida vai fazer sexo numa casa de massagens pela primeira vez, em que ele pergunta: e agora o que é que você quer? Quer que eu conte como foi para quê? E coloca ao leitor a questão do horror.

Nessa parte do livro ele acusa- nos de sermos um nojo. Tornámo-nos indiferentes?
Existem dois problemas retratados nessa cena. Um é a indiferença, que atravessa o romance, o outro é a cumplicidade e o atractivo pelo horror. Nessa cena, o que ele está a interperlar é o facto de que todos temos um potencial de horror, que de alguma forma tentamos conter, mas que “explode” no submundo das ruas. Falando da indiferença, o que me surpreende não é tanto o horror mas a capacidade de vivermos no meio dele sem enlouquecer. Hoje, nas grandes metrópoles – e na América Latina isso é muito claro – estão-se a construir muralhas para separar as classes sociais, muros físicos ou virtuais que nos dividem e nos impedem de ver o outro. Isso está a criar uma quantidade incrível de problemas, dos quais quem mais sofre é quem está lá em baixo.

A literatura é uma forma de lidar com o horror?
Sim. Para um escritor é uma espécie de catarse, uma forma de tentar ver de modo diferente e de transformar o horrível em algo bonito. Ao mesmo tempo – e sem ser a salvação do mundo – tem o potencial de rachar essas muralhas e criar pequenas janelas através das quais podemos ver o outro, e talvez assim sensibilizar quem lê.

O Brasil do livro é o de Salvador da Baía, que já estava presente noutro conto seu. Salvador é a sua cidade do coração?
É. Eu cheguei na Baía em 1995 e fiquei completamente deslumbrado pela cidade. A Baía tem algo muito poderoso que é a convivência entre a coisa mais sórdida e a mais bela do mundo. Contém o pior e o melhor do ser humano, ao mesmo tempo. Tudo está à flor da pele. Isto tem a ver com a própria história de Salvador, que foi o lugar com mais importação de escravos africanos. É uma região muito pobre, com diferenças sociais terríveis e um racismo muito forte, apesar do mito da democracia racial brasileira. É uma cidade muito forte e um material riquíssimo, que curiosamente não tem sido muito explorado na literatura recente. Explorou-se muito no modernismo, com o Jorge Amado, e agora parece que há um certo medo da parte dos escritores de chegar perto desse material. Como romper com a herança de Jorge Amado?

É verdade que foi para a Baía um bocadinho por causa dele?
Sim, na época me fascinou aquele mundo que ele descrevia nos romances. Só que quando cheguei lá dei-me conta de que já era outro mundo, igualmente mágico, mas outra realidade. Há uma tendência em Jorge Amado de idealização e folclorização que eu acho que é importante tentar quebrar, para falar do mundo que existe hoje. Estou a terminar um doutoramento em literatura latino-americana, e a minha tese é sobre a literatura marginal do Brasil. Há uma produção interessantíssima de autores que vêm das favelas, das periferias, ou até mesmo das prisões. É um fenómeno interessante porque conseguiu ter acesso ao mercado. Eu acho que esse tipo de literatura se escreve sempre, mas com o sucesso da Cidade de Deus, que foi escrito por Paulo Lins, que vem mesmo do bairro Cidade de Deus, houve uma abertura no mercado para esse tipo de literatura, que é espectacular.



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