25 de outubro de 2010

Sarau Bem Black lança livro do mexicano Alejandro Reyes

Publicado em Gramática da Ira
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Noitada no Sankofa African Bar, na quarta (27/10),
terá debate, exibição de doc. de Fela, muita poesia
e a música de Jimi Hendrix


O escritor mexicano Alejandro Reyes lança o livro A Rainha do Cine Roma (LeYa) na próxima quarta (27/10) durante edição especial do Sarau Bem Black, evento do Coletivo Blackitude que acontece todas as quartas, no Sankofa African, Pelourinho. O autor, que morou em Salvador na década de 90, volta à cidade para apresentar seu primeiro romance, cuja trama se passa nas ruas de cidade e explora o cotidiano de meninos de rua, assunto com o qual se tornou familiar a partir da experiência de trabalho com menores em situação de risco. O livro será vendido por R$ 25, 00 durante o evento.

Além da sessão de autógrafos, Alejandro participa de bate papo e é convidado especial do Sarau Bem Black. A programação, gratuita, começa às 18h, com exibição do documentário “A Música é a Arma” sobre o músico e ativista nigeriano Fela Kuti. Após o filme, que será comentado por Nelson Maca, Alejandro Reyes fala sobre o movimento mexicano zapatista: suas ações revolucionárias indígenas e suas propostas para a construção de uma nova sociedade. Também participa do papo o ativista político e músico Robson Véio (ex-Lumpen), que traz a conversa para esferas cotidianas e locais através de suas experiências em iniciativas como o Passe Livre e Mídia Independente.

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Das 20h30min às 22h, o Sarau Bem Black segue a normalidade de sempre: abertura com os rappers Rone Dundum & Lázaro Erê , do grupo de Opanijé, com a música Encruzilhada, cujas imagens e sons referências a Exu abre os caminhos da noitada poética. Na sequência, sobem no tablado as poetas mirins Luiza Gata e Lucinha Black Power, além de outras crianças do grupo Este Tal Recital, convidadas especialmente para receber o romancista Alejandro Reyes.

Por fim, Nelson Maca, Iara Nascimento e Lázaro Erê, mestres cerimônia do sarau, declamam e abrem os microfones aos poetas da platéia, um dos momentos mais esperados e surpreendentes da noite. Ao final, Lázaro Erê e Rone & Dundum fecham a noite com mais um rap autoral. Tudo isso será introduzido, comentado e ambientado pelas vinhetas musicais do DJ Joe que, a cada evento, homenageia um artista ou grupo da música negra. Nessa edição especial, o escolhido é o norte-americano Jimi Hendrix.


O romance A Rainha do Cine Roma

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A Rainha do Cine Roma traz a história de Maria Aparecida e Betinho, crianças que se conhecem nas ruas de Salvador e que, unidas pelo sofrimento e pela amizade, atravessam os duros dias de uma vida de abandono.

A narrativa do livro é feita em primeira pessoa, através de Betinho. Morador de rua desde os sete anos - sobrevivendo de pequenos furtos e michês – ele fugiu de casa para escapar da violência imposta por seu padrasto. Vagava pelas ruas da Cidade Baixa, sempre sozinho, até se deparar com Maria Aparecida, uma pequenina e frágil garota de dez anos que sofre uma drástica mudança na vida após a morte da mãe e decide fugir de casa. Vítimas de abusos por parte dos pais, Maria Aparecida e Betinho passam a viver em um cinema abandonado: o Cine Roma. E, apesar de todo o suplicio que lhes é imposto, os dois constroem um forte laço capaz de resistir a tudo.

Reflexões sobre temas negligenciados pela sociedade, como abuso sexual, drogas, homossexualidade, AIDS, prostituição, preconceito racial, violência física e o abandono estão presentes nas 296 páginas do livro. Chama atenção dos leitores para um universo sujo e cruel, que é imposto àqueles que estão, desde muito cedo, às margens da sociedade. A Rainha do Cine Roma retrata a vida de quem vive nas ruas, o submundo ignorado pela população de “bem” e pelos governantes. É uma bela história sobre a esperança de duas crianças, maltratadas pela vida e pela circunstância, mas que nunca deixaram de acreditar que, um dia, poderiam ser amadas de verdade.


Bate-papo

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O lançamento do romance será antecedido de um bate-papo sobre as razões e ações do movimento zapatista e da autonomia possível nas práticas sócio-culturais cotidianas. A mesa contará com Alejandro Reyes (Chiapas-México), Robson Véio e Nelson Maca (Salvador). “A idéia é fazer uma síntese histórica do afrobeat e da atuação política de Fela Kuti, um panorama do movimento zapatista, sobretudo frisando como ele se torna uma revolução interna que redimensiona a esquerda tradicional graças ao componente indígena, e também com se dissemina pelo mundo”, explica Nelson Maca. Todos falam de experiências vinculadas numa rede cada vez mais ampla de resistência contra o sistema capitalista. Serão lembradas propostas e práticas de autonomia em territórios em rebeldia - construção de sistemas autônomos de educação, saúde, governo, justiça, mídia, arte, produção e comércio. Questões étnicas e identitárias, sem dúvida, serão a base das ações e reflexões da noite.


SERVIÇO

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Evento: Sarau Bem Black
Quando: quarta-feira (27/10), das 18 às 22h
Onde: Sankofa African Bar (Pelourinho)
Entrada franca

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Alejandro Reyes

Alejandro Reyes nasceu na cidade do México, é jornalista e escritor. Depois de viver nos Estados Unidos e na França, mudou-se para o Brasil, onde trabalhou com crianças e adolescentes. É mestre em Estudos Latino-Americanos pela Universidade da Califórnia e doutorando em Literatura Latino-Americana, com tese sobre a literatura marginal. É ativista e membro do coletivo de mídia alternativa Rádio Zapatista.

Robson Véio

Artista vegan e produtor cultural, teve suas primeiras experiências culturais ainda em tenra idade no bairro onde morava, Castelo Branco, onde organizava almoços coletivos, campeonatos esportivos, sessões de filmes, fanfarra, festas etc... Já realizou turnê por vários estados brasileiros fazendo palestras e tocando em eventos de grande relevância dentro da cena independente como o Festival Hardcore, a Verdurada, Carnaval Revolução, a ocupação Chiquinha Gonzaga etc... Atualmente escreve para seu blog pessoal além de atuar nos Coletivo Arterisco, Blackitude, Positivoz, no Sindicato dos Comerciários de Salvador e prepara-se para gravar seu primeiro trabalho solo baseado na linguagem do RAP.

Contatos: blackitude@gmail.com

15 de outubro de 2010

Perdidos

Publicado em: Blog de Leonardo Sodré

Paulo Correia
Jornalista
ph-correia@uol.com.br

“Mas você me prometeu que pagaria um churrasco”. Essa frase eu ouvi faz uns três anos, em uma das edições do Carnatal. Ouvi quando estava saindo do corredor da folia, acompanhado de alguns amigos, e foi dita por uma garota que deveria ter no máximo nove anos. Estava suja, com os cabelos desgrenhados e usava uma camisa que cobria o seu corpo inteiro. Ela cobrava o churrasco de um homem de uns 35 anos, vestido com um abadá e que estava muito constrangido pela forma como a menina cobrava. Ele resmungava e dizia que não devia nada para ela, que ela fez porque quis. Esse momento nunca saiu da minha cabeça. Lembrei dele quando terminei a leitura de A Rainha do Cine Roma.
Escrita por Alejandro Reyes, um mexicano que desde 1995 vive em Salvador, a publicação conta a história de Betinho e Maria Aparecida, duas crianças que desde muito cedo sentiram na pele os absurdos da vida. Foram espancados pelos pais e padrastos, violentados sexualmente em suas casas, e tiveram que fugir desse mar de lama para tentarem não enlouquecer. Com a fuga, passam a viver nas ruas de Salvador.
Circulando entre o centro e a Cidade Baixa, vão encontrando tipos que toda cidade possui: os bêbados, as prostitutas, os travestis, os policiais espancadores, as doenças, e o pior de todos os males: a indiferença da população. Crescem nesse meio insalubre, aproveitando tudo o que a vida pode oferecer tanto para o lado negativo como para o positivo. A passagem dos anos é observada não pelo número de páginas viradas, mas pelo sofrimento que a metrópole lhes causa.
O livro, lançado no final de setembro, é um verdadeiro soco no estômago dos desavisados, mas um retrato fiel da juventude que mora nas ruas e que luta para manter a dignidade em meio a tanta sujeira e misérias da sociedade. Uma obra que merece a atenção de todos nós.
Uma obra que fala de tudo. De sexo, drogas, de AIDS, de amizades verdadeiras, de mesquinharias, de alegrias e tristezas. Que retrata uma Salvador onde os Capitães da areia se multiplicaram. Mas acima de tudo, que exibe a força do ser humano. Um livro que mostra que o amor e o carinho ainda conseguem viver.
Fica a dica de canto de página: A Rainha do Cine Roma

10 de outubro de 2010

A ponte entre o humano e a condição de animal

Publicado no Diário do Nordeste


O espaço dos grandes centro urbanos, como abrigo às transgressões sociais, de há muito já se inscreve nos diversos gêneros, quer da prosa, quer da poesia. A partir do surgimento da literatura moderna, isso se fez presente com mais intensidade, o que, de certa forma, contribuiu para dissolver certas crenças em paz e bem-estar

O foco narrativo é conduzido em primeira pessoa, a internalização da leitura da trama se justifica plenamente por estar ela entregue a um dos protagonistas, Betinho - já morava na rua desde a tenra idade de sete anos, alimentando-se de pequenos furtos até o embate com coisas mais terríveis. Até que conheceu, também nos cenários das ruas, Maria Aparecida - uma frágil menina que, aos dez anos, após a morte da mãe, decide fugir de casa, uma vez que, antes, sofre abusos sexuais no espaço doméstico. Eles - os protagonistas - passam a ocupar um cinema abandonado: O Cine Roma; passam, então, a corporificar aquela metáfora de Cruz e Sousa: "Os miseráveis e os rotos / são as flores dos esgotos". No entanto, mesmo com tanto suplício, são capazes, assim, de cultivar fortes laços.

Considerando as tendências por que se movem as narrativas de ficção na pós-modernidade, ainda que o ponto de vista interno seja, predominantemente, conduzido pela personagem Betinho, tal não implica ausência de inúmeras vozes narrativas, numa multiplicidade de focos:"Maria Aparecida falava uma coisa, falava outras, contava tudo quanto é história, a gente ficava sem saber o que era verdade e o que era invenção de sua cabeça." (p.22) Com isso, o narrador passa também a interagir com o falar dessa personagem, ao mesmo tempo em que, apanhando um episódio aqui, outro acolá, ora como que tece uma colcha de retratos, ora com que manuseia as pedras de um estranho quebra-cabeças, vai, pouco a pouco, construindo aquela personagem aos olhos do leitor, sempre com tintas precisas e fortes de realidade.

O espaço da trama é a cidade de Salvador, na Bahia, - e não como não fazer uma referência ao romance "Capitães d´Areia", de Jorge Amado, ainda que o tratamento do tema, a composição romanesca, a construção das personagens e, ainda, o manuseio da linguagem sejam absolutamente distanciados. Se em Jorge Amado, evolam-se momentos de lirismo, se sentimentos de comiseração, se certos alumbramentos se façam presentes, aqui, a linha é outra: frases incisivas, curtas, cruas, numa plena harmonia com a atmosfera a envolver os excluídos.

Uma nota que merece registro é, sendo o espaço uma cidade da Bahia, não faltam traços singulares à cultura do povo baiano, tanto relativos à culinária, ao vestuário, a crenças, ritos e mitos: "A noite está uma lindeza, a lua brilha lá no alto, iluminando a gameleira e a mangueira, e o riacho que passa por perto, e cá dentro tem bandeirolas e folhas e laços vermelhos e um bocado de filhos e filhas de santo vestidos com as roupas de Xangô, Iansã, Ogum, Oxu, Iemanjá". (p23) E não faltam os foguetes a iluminar as mais variadas iguarias da festa.

Nos tempos do "Cine Roma", eles vislumbravam uma vida de gente rica, abastada, embora não acontecesse muita coisa. Até já consideravam coisa muito grande que eles morassem em um castelo, sim, um castelo, ainda que fosse um castelo abandonado, fedido, cheio de ratos e de baratas, mas, enfim, um castelo, em nada parecido com aqueles barracos sustentados por papelão. Ainda mais podiam curtir a praia, os amigos, as aventuras pela cidade; as coisas somente não se imprimiam como uma maravilha dentro dos limites dessa maravilha, por conta dos acessos de loucura, de descontrole, que tomavam conta de Maria Aparecida - nessas ocasiões, quem sempre levava a pior era o narrador, a quem, com desdém, insultava-lhe a condição de homossexual e também de abandonado de todos.

Mais à frente, a trama sofre uma transformação, e os protagonistas vão, rigorosamente, enfrentar a vida nas ruas, agora na condição exata de pivetes. Ficaram quase um ano morando no largo do relógio de São Pedro, com a casa, agora, improvisada de papelão. Eles deixavam a vida correr, virando-se com pequenos delitos, a partir dos quais conseguiam alguns trocados para a comida. No entanto, muito conscientes de que a vida nas ruas é mesmo uma vida de cão: "De tanto o povo tratar a gente como bicho, a pessoa começa a achar que é bicho mesmo, começa a agir como bicho, fazer qualquer besteira sem pensar em mais nada". Atormenta-lhes a ausência da resposta: como não tornar-se realmente um bicho?" A trama mostrará.

CARLOS AUGUSTO VIANAEDITOR