16 de outubro de 2013

A Rainha do Cine Roma: Resenha da Jornada Literária de Passo Fundo


Você sabe como vive um menino de rua? Talvez viva pedindo esmola, dormindo em qualquer canto, roubando, se drogando, vendendo seu corpo por uma miséria. Talvez nada disso, um pouco disso, ou tudo isso junto. Como é, então, que um menino de rua vai viver um romance? Só quem leu este livro saberá as incríveis histórias, mais tristes do que felizes, que um romance assim pode contar.

Betinho, um menino de coração bom, perdido no sofrido mundo das ruas, vivendo de qualquer jeito, comendo qualquer coisa, dormindo em qualquer lugar e que, de repente, se vê tomado pela alegria de encontrar Maria Aparecida, que, segundo ele, é um anjo no meio de um cenário imundo, em algum lugar de Salvador. Assim nasce essa história que entra na mente de quem lê como uma faca que penetra o peito. Como um balde de água gelada, escancarando uma realidade que a maioria das pessoas nunca viu. Um espelho do mundo suburbano, descrito passo a passo, detalhadamente e sem pudor.

Incrível a maneira como o autor entrelaça as histórias das personagens ao longo da narrativa. São quatro personagens principais: Mariana Aparecida, Betinho, Chico e Creuza. Cada vida, uma por uma, contada com todo o cuidado, e por fim, unindo-se, formando um arrebatador misto de amor e profundo sofrimento. Três almas desgastadas pela vida nas ruas, pela incerteza do amanhã ou do motivo pelo qual estão vivendo, procurando uma na outra uma esperança, uma ponta de felicidade que a amargura do mundo não os deixava ver. No meio disso, Chico, o estudante de direito, de origem humilde mas nem tanto.

Uma parte do livro que vale a pena destacar, é quando Maria Aparecida, menina de rua, que apanhou tanto da vida de um jeito que ninguém pode imaginar, encontra Chico. O menino era pequeno, tinha se perdido da mãe em uma tarde, e ela quis o ajudar, viu logo que ele não era da rua, que vestia roupas boas e estava limpo. Levou-o até o lugar onde dormia: uma casa de caixas de papelão, onde ela mesma mal cabia dentro. Dormiram os dois juntos, crianças, descobrindo o mundo. Se apaixonaram. No outro dia saíram em busca de comida, pedir esmola, caminhar por Salvador, quando Chico avista sua mãe do outro lado da rua e sai correndo para abraça-la. Após o reencontro ele olha para o lugar onde Maria Aparecida estava, toda suja, com roupas aos trapos e ambos veem a distância de realidade entre um e outro, refletida no olhar de nojo com que a mãe de Chico olhava para a menina parada do outro lado da rua.

Mas o romance não se resume a isso. Há muita interação com o leitor. Alejandro conversa, provoca, instiga, como se estivesse batendo um papo com quem lê. Faz o sentimento sair das páginas, tomar vida. Toda a dor, todo o horror, o sexo, o amor, bem diante dos nossos olhos, descrito com maestria e simplicidade sem conter os palavrões e indignações. Criando questionamentos intensos internamente. Todo o cuidado para que o grande desenrolar da história seja descoberto apenas nas ultimas páginas, deixando o leitor de boca aberta – eu pelo menos fiquei.

Um mundo desconhecido e distante, trazido à tona de repente. Diferente dos romances onde o sofrimento é poético, lindamente doloroso, este apresenta um sofrimento real. Não apenas da alma, mas do corpo, da vida. Uma incansável luta de quatro almas boas que, desde que vieram ao mundo, comeram o pão que o diabo amassou, sobreviveram a tudo, e ainda fizeram brotar uma de esperança e cumplicidade flor no meio do deserto seco. É um romance para quem tem estômago forte.

3 de outubro de 2013

Na mochila de Alejandro Reyes

Publicado em NEXJOR - Univesidade de Passo Fundo

Alejandro Reyes nasceu no México, viajou por muito tempo como mochileiro,  conhecendo inúmeros países, até se apaixonar por uma brasileira. Escritor, tradutor, jornalista e ativista, mudou-se para o Brasil em 1995, onde trabalhou com crianças e adolescentes, principalmente na cidade de Salvador. Veio daí grande parte – se não toda – da inspiração para seu primeiro romance, o inusitado “A rainha do cine Roma”, que  foi finalista do prêmio Leya em Portugal e conquistou o prêmio Lipp 2012 no México.

Sobre o livro: você pode conferir a resenha clicando aqui.

Como se deu a construção das personagens do livro “A rainha do Cine Roma”? Elas são reais?

“Na verdade o livro está cheiro de pedacinhos de histórias. As personagens, nenhuma é uma única pessoa. Todas as personagens são construídas de diferentes pessoas. A Creuza, por exemplo, eu conheci uma menina que viveu coisas parecidas. Mas isso é misturado com histórias de outras crianças, e muito de imaginação.”

Alejandro Reyes Foto Paulo Ricardo dos Santos
Alejandro participou do Palco de Debates da 15ª Jornada Nacional de Literatura no sábado, junto com Sérgio Vaz e Emicida





Durante a narrativa você brinca com o leitor, conversa com ele, o provoca. Como e por que você decidiu apresentar a narrativa desta maneira?

“Foi um pouco inconsciente, surgiu assim. Mas no fundo eu acho que tem a ver com essa questão de provocar. Ou seja, muito do que a gente lê, ou vê no cinema, sobre as questões mais duras da nossa sociedade, da nossa realidade, muitas vezes elas são tratadas de uma maneira muito distante. O leitor fica aqui sentado na sua poltrona confortável, vendo aquilo de longe, e isso é ruim. Justamente o que a gente quer fazer, o grande potencial da literatura, particularmente do romance, é quebrar essas barreiras. Nem uma outra arte consegue entrar na problemática existencial do ser humano.”

Com relação aos moradores de rua, o que você viu de diferente nas ruas dos Brasil se as compararmos com as ruas de outros países?

“É muito semelhante. As populações que são mais vulneráveis são as que são mais exploradas.”

O que mais encantou e o que mais chocou você durante as viagens?

“Esse sofrimento das crianças, pra mim, é o que mais dói. Porque elas não tem um estrutura para se defender, para resistir àquilo. É uma dilaceração do ser humano. O que mais me encanta é que nas situações mais duras, mais difíceis, mais pavorosas, vem o espírito de resistir. Como gente que vive na rua, que todo dia é esculachado, que todo o dia é tratado como se não existisse e não fosse gente, conseguem continuar acreditando que são gente e continuar amando e sendo solidários com o outro.”

Como foi ser finalista do prêmio Leya em Portugal e ganhar o prêmio Lipp no México?

“Pra mim foi muito bacana. Porque escrever é uma atividade muito solitária, e é muito difícil entrar no mercado editorial.”

Pretende lançar novos romances?

“Com certeza. Nesse momento estou trabalhando em um romance que tem a ver com migração e que acontece um pouco no México, um pouco nos Estados Unidos e um pouco no Brasil.”

Como jornalista, como você avalia o jornalismo atual?

“O grande problema do jornalismo é que é uma mercadoria. Para sobreviver, as empresas jornalísticas tem de vender a informação. Não é mais aquela coisa independente, capaz de ter um olhar crítico ao que acontece na sociedade. A mídia comercial é parte do problema. A alternativa à isso, são essas mídias alternativas, independentes, que não fazem da informação uma mercadoria.”