Você sabe como vive um menino de rua?
Talvez viva pedindo esmola, dormindo em qualquer canto, roubando, se
drogando, vendendo seu corpo por uma miséria. Talvez nada disso, um
pouco disso, ou tudo isso junto. Como é, então, que um menino de rua vai
viver um romance? Só quem leu este livro saberá as incríveis histórias,
mais tristes do que felizes, que um romance assim pode contar.
Betinho, um menino de coração bom,
perdido no sofrido mundo das ruas, vivendo de qualquer jeito, comendo
qualquer coisa, dormindo em qualquer lugar e que, de repente, se vê
tomado pela alegria de encontrar Maria Aparecida, que, segundo ele, é um
anjo no meio de um cenário imundo, em algum lugar de Salvador. Assim
nasce essa história que entra na mente de quem lê como uma faca que
penetra o peito. Como um balde de água gelada, escancarando uma
realidade que a maioria das pessoas nunca viu. Um espelho do mundo
suburbano, descrito passo a passo, detalhadamente e sem pudor.
Incrível a maneira como o autor
entrelaça as histórias das personagens ao longo da narrativa. São quatro
personagens principais: Mariana Aparecida, Betinho, Chico e Creuza.
Cada vida, uma por uma, contada com todo o cuidado, e por fim,
unindo-se, formando um arrebatador misto de amor e profundo sofrimento.
Três almas desgastadas pela vida nas ruas, pela incerteza do amanhã ou
do motivo pelo qual estão vivendo, procurando uma na outra uma
esperança, uma ponta de felicidade que a amargura do mundo não os
deixava ver. No meio disso, Chico, o estudante de direito, de origem
humilde mas nem tanto.
Uma parte do livro que vale a pena
destacar, é quando Maria Aparecida, menina de rua, que apanhou tanto da
vida de um jeito que ninguém pode imaginar, encontra Chico. O menino era
pequeno, tinha se perdido da mãe em uma tarde, e ela quis o ajudar, viu
logo que ele não era da rua, que vestia roupas boas e estava limpo.
Levou-o até o lugar onde dormia: uma casa de caixas de papelão, onde ela
mesma mal cabia dentro. Dormiram os dois juntos, crianças, descobrindo o
mundo. Se apaixonaram. No outro dia saíram em busca de comida, pedir
esmola, caminhar por Salvador, quando Chico avista sua mãe do outro lado
da rua e sai correndo para abraça-la. Após o reencontro ele olha para o
lugar onde Maria Aparecida estava, toda suja, com roupas aos trapos e
ambos veem a distância de realidade entre um e outro, refletida no olhar
de nojo com que a mãe de Chico olhava para a menina parada do outro
lado da rua.
Mas o romance não se resume a isso. Há
muita interação com o leitor. Alejandro conversa, provoca, instiga, como
se estivesse batendo um papo com quem lê. Faz o sentimento sair das
páginas, tomar vida. Toda a dor, todo o horror, o sexo, o amor, bem
diante dos nossos olhos, descrito com maestria e simplicidade sem conter
os palavrões e indignações. Criando questionamentos intensos
internamente. Todo o cuidado para que o grande desenrolar da história
seja descoberto apenas nas ultimas páginas, deixando o leitor de boca
aberta – eu pelo menos fiquei.
Um mundo desconhecido e distante,
trazido à tona de repente. Diferente dos romances onde o sofrimento é
poético, lindamente doloroso, este apresenta um sofrimento real. Não
apenas da alma, mas do corpo, da vida. Uma incansável luta de quatro
almas boas que, desde que vieram ao mundo, comeram o pão que o diabo
amassou, sobreviveram a tudo, e ainda fizeram brotar uma de esperança e
cumplicidade flor no meio do deserto seco. É um romance para quem tem
estômago forte.