5 de outubro de 2014

Horas extraordinárias

Publicado em: Horas extraordinárias

Brutal! É o termo para classificar este romance avassalador, tanto no plano literário pois é uma obra muitíssimo bem concebida e escrita, quanto no aspecto humano, levando-nos imediatamente para outros nomes e obras dos Mestres do género: Jorge Amado, José Mauro de Vasconcelos, Vargas Llosa, Garcia Márquez… acho que só um latino-americano (recordo o cubano Pedro Juan Gutiérrez) conseguiria de facto escrever assim de forma tão crua e agressiva, bruta, genuína, (re)criando personagens sacadas à rua e narrando o que é a realidade das vidas degradadas nas urbes daquele continente!

Cheguei ao fim deste romance com um nó na garganta e outro no estômago, confesso que nunca mais olharei para um miúdo com a caixinha da graxa do mesmo modo, ou mesmo para um travesti… tenho de ser honesto e coerente com aquilo que o livro ainda despertou nesta carcaça de homem rude a envelhecer!

Reforça também a minha opinião quanto à diferença entre o escritor que vive profundamente a realidade e consegue escreve sobre ela, para outro que ficciona sobre algo que aflorou ou viu, e, lhe inspira a imaginação. Alejandro Reyes é jornalista e escritor, académico em estudos e literatura Latino-Americana, mas sobretudo trabalhou com crianças de rua e adolescentes, no Brazil.

O que ele descreve e conta é a dura realidade, é verdade, acontece-mesmo, há gente assim e vidas assim! É isso o que nos agride por um lado e maravilha por outro, pois ele consegue apresentar-nos no meio da violência das ruas e do vício, sentimentos de humanidade, generosos, bons… o que inapelávelmente nos toca e apaixona.

Num contexto geográfico-social diferente recordou-me outra obra recente e discreta, que para mim também ficou a ser de referência pelo tal aspecto humano a que sou sensível: “Entre Cós e Alpedriz”, do nosso Extraordinário José Catarino, que gravou igualmente no seu romance a dura realidade duma vida serrana, que se formos procurar ainda existe e aqui, à nossa porta.

A Rainha do cine Roma é um grande romance que aconselho vivamente, mas atenção, é para quem deveras tenha peito como aconselha Pepetela, e, estômago acrescento eu!

21 de agosto de 2014

Viajar pela Leitura: Opinião

Sinopse

No dia em que se conhecem, Maria Aparecida e Betinho, duas crianças de rua em Salvador da Bahia, tornam-se inseparáveis. Vítimas de abusos por parte dos pais, fazem do Cine Roma a sua casa, e da amizade que os une, um antídoto para combater a dura realidade de quem vive a fugir de sombras ameaçadoras.
No ambiente de violência das ruas, os dois amigos vão crescendo e, um dia, os seus caminhos separam-se. Betinho vai para o Rio de Janeiro com um namorado e Maria Aparecida fica a viver numa igreja abandonada com outros desabrigados. Magoada pelo abandono do amigo, e na esperança de se reconciliar com a sua memória, decide regressar a casa para tomar conta do pai. De volta à rua, começa a prostituir-se, cruza-se com Creuza e desce ainda mais fundo ao inferno.

Betinho, agora Roberta, regressa a Salvador para reencontrar Maria Aparecida, desencontrada de si, perdida nos excessos. Entre exorcismos de mágoas, abraços de saudades e lágrimas, voltam a viver juntos. Nem a presença de Creuza, nem mesmo Chico, um poeta com quem Maria vive um amor proibido, consegue separar os dois companheiros de solidão e retirar-lhes a única coisa que ainda os faz viver: a esperança. Um romance sobre a vida real no submundo urbano baiano. Uma história sobre duas crianças que um dia sonharam que podiam ser amadas.

Opinião
Duro. Violento. Dramático.

“A Rainha do Cine Roma” é um livro bombástico, deveras chocante. Só assim pode ser descrito, por muito que nos cheguem testemunhos da realidade das ruas do Brasil – como eventualmente de outros países da América Latina –, através de documentários ou da recente vaga de filmes que exploram a crueza desse lado do mundo e da vida daqueles que nele habitam.

Esta história incide sobre a vivência de várias personagens, que parecem carregar com elas todos os pecados que podem caber num só corpo humano. Na verdade, pecados aos olhos da sociedade, porque aquilo que elas carregam são estigmas, azares consequentes da aleatoriedade do universo que o Homem jamais terá capacidade, nem sequer vontade, de mudar. O autor faz-nos ver que as personagens são boas no seu íntimo, embora incapazes de quebrar as barreiras que lhes são impostas desde tenra idade. E quando nos é dado a entender que conseguem uma vitória, mais um desafio lhes é imposto, daqueles que são impossíveis de ultrapassar. A vida destas pessoas é vivida numa espécie de montanha em constante derrocada, onde a cada metro escalado com custo acabam por se afundar três ou quatro, rumo ao abismo.

Drogas, prostituição, homossexualidade, educação, violência, pedofilia, incesto, pobreza. Tudo isto está descrito nestas páginas de um modo tão frio quanto o enredo narrado na primeira pessoa pode oferecer.

Trata-se de um excelente livro, onde a perseverança persiste, assim como o estranho fado que acompanha aqueles que nada têm.

20 de fevereiro de 2014

Entrevista com Dana Burlac: boa hora para a literatura brasileira

 Publicado em: La Latina

Romance do mexicano Alejandro Reyes cuja história se passa no Brasil.
Romance do mexicano Alejandro Reyes cuja história se passa no Brasil.

Escrevendo extensas matérias jornalísticas sobre literatura para veículos impressos, conheço uma série de profissionais do meio editorial que me dão “sabrosas” entrevistas individuais. Nem todos cabem nos textos, mas muitos oferecem carinhosamente tempo, histórias, dados e opiniões – e seria uma pena ver esse conteúdo perdido ou esquecido.

É o caso da francesa Dana Burlac, da editora Denoël, de Paris, que já publicou títulos argentinos, cubanos, chilenos, mexicanos, nicaragüenses… Mas nenhum brasileiro, apesar de ter morado um período no país. Nosso papo foi motivado pelo estilo francês de publicar livros, muitas vezes avesso à excessiva exposição do autor para impulsionar as vendas.