4 de agosto de 2009

Retrato da rua sem anestesia



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Retrato da rua sem anestesia


Pepetela chamou-lhe um livro “duro, cru, verdadeiro”, impróprio para peitos fracos. Estava a falar de A Rainha do Cine Roma, primeiro romance de Alejandro Reyes e um retrato de dois meninos de rua no Brasil. Ana Dias Ferreira falou com o autor
 

Pepetela chamou-lhe um livro “duro, cru, verdadeiro”, impróprio para peitos fracos. Estava a falar de A Rainha do Cine Roma, primeiro romance de Alejandro Reyes e um retrato de dois meninos de rua no Brasil. Ana Dias Ferreira falou com o autor Alejandro Reyes, natural do México, morou nove anos em Salvador da Baía, no Brasil. Num deles, enquanto carburava num primeiro romance, o jornalista mergulhou na noite e nas ruas, apanhando o calão, as asneiras e as histórias – quase todas horríveis – das pessoas que ia encontrando. Nessa altura, Reyes já trabalhava com organizações de assistência social a meninos de rua, e lá pelo meio decidiu: o seu livro tinha de ser escrito pelo ponto de vista de um desses meninos. Chamou-lhe A Rainha do Cine Roma.
O romance, que chega a Portugal através da Oficina do Livro e foi finalista ao Prémio Leya, é um retrato duro e ao mesmo tempo comovente de duas crianças sem tecto: Betinho, o narrador, e Maria Aparecida. Entre os muitos temas tratados está a prostituição infantil, a homossexualidade e Deus.
Qual a história mais chocante que conheceu no Brasil?
Foram tantas… No romance há uma menina, a Perereca, que está cadavérica e acabada com crack, e ela é inspirada numa criança que conheci de facto, um menino de rua de quem me tornei amigo. Eu deixei de frequentar o centro da cidade durante um ano e quando voltei ele estava assim, não me reconhecia, estava cadavérico do vício da droga, andava correndo atrás dos turistas procurando dinheiro, não era mais ele. Outro aspecto da personagem Perereca, quando ela é violentada por dois polícias porque não quer fazer sexo oral de graça, também é uma história que escutei nas ruas. Há outras muito duras de crianças que fogem. Uma menina me contava que fugiu de casa aos seis anos porque o pai a violentava. E eu ficava tentando imaginar como é que aos seis anos a gente pode fazer uma decisão deste tamanho.

Nota-se que o livro é escrito por alguém que esteve no meio dessa realidade. É por isso que ele é tão real e tão duro?
Quando comecei a escrever o romance, um dos grandes desafios era como aproximar o leitor desta realidade. Passei um mês a tentar escrever o primeiro capítulo, a tentar achar uma voz narrativa. Finalmente, decidi ir por um caminho bastante difícil: ser um dos meninos de rua, o Betinho, o narrador. Portanto, o livro tinha de conter muito dessa linguagem de rua, muito mais dura e com a qual eu não cresci. Havia um desafio linguístico, e para poder incorporar essa linguagem passei muitos dias e noites caminhando pelas ruas e falando com as pessoas.

O narrador conta a história mas também interpela o leitor.
Há uma cena, quando a Maria Aparecida vai fazer sexo numa casa de massagens pela primeira vez, em que ele pergunta: e agora o que é que você quer? Quer que eu conte como foi para quê? E coloca ao leitor a questão do horror.

Nessa parte do livro ele acusa- nos de sermos um nojo. Tornámo-nos indiferentes?
Existem dois problemas retratados nessa cena. Um é a indiferença, que atravessa o romance, o outro é a cumplicidade e o atractivo pelo horror. Nessa cena, o que ele está a interperlar é o facto de que todos temos um potencial de horror, que de alguma forma tentamos conter, mas que “explode” no submundo das ruas. Falando da indiferença, o que me surpreende não é tanto o horror mas a capacidade de vivermos no meio dele sem enlouquecer. Hoje, nas grandes metrópoles – e na América Latina isso é muito claro – estão-se a construir muralhas para separar as classes sociais, muros físicos ou virtuais que nos dividem e nos impedem de ver o outro. Isso está a criar uma quantidade incrível de problemas, dos quais quem mais sofre é quem está lá em baixo.

A literatura é uma forma de lidar com o horror?
Sim. Para um escritor é uma espécie de catarse, uma forma de tentar ver de modo diferente e de transformar o horrível em algo bonito. Ao mesmo tempo – e sem ser a salvação do mundo – tem o potencial de rachar essas muralhas e criar pequenas janelas através das quais podemos ver o outro, e talvez assim sensibilizar quem lê.

O Brasil do livro é o de Salvador da Baía, que já estava presente noutro conto seu. Salvador é a sua cidade do coração?
É. Eu cheguei na Baía em 1995 e fiquei completamente deslumbrado pela cidade. A Baía tem algo muito poderoso que é a convivência entre a coisa mais sórdida e a mais bela do mundo. Contém o pior e o melhor do ser humano, ao mesmo tempo. Tudo está à flor da pele. Isto tem a ver com a própria história de Salvador, que foi o lugar com mais importação de escravos africanos. É uma região muito pobre, com diferenças sociais terríveis e um racismo muito forte, apesar do mito da democracia racial brasileira. É uma cidade muito forte e um material riquíssimo, que curiosamente não tem sido muito explorado na literatura recente. Explorou-se muito no modernismo, com o Jorge Amado, e agora parece que há um certo medo da parte dos escritores de chegar perto desse material. Como romper com a herança de Jorge Amado?

É verdade que foi para a Baía um bocadinho por causa dele?
Sim, na época me fascinou aquele mundo que ele descrevia nos romances. Só que quando cheguei lá dei-me conta de que já era outro mundo, igualmente mágico, mas outra realidade. Há uma tendência em Jorge Amado de idealização e folclorização que eu acho que é importante tentar quebrar, para falar do mundo que existe hoje. Estou a terminar um doutoramento em literatura latino-americana, e a minha tese é sobre a literatura marginal do Brasil. Há uma produção interessantíssima de autores que vêm das favelas, das periferias, ou até mesmo das prisões. É um fenómeno interessante porque conseguiu ter acesso ao mercado. Eu acho que esse tipo de literatura se escreve sempre, mas com o sucesso da Cidade de Deus, que foi escrito por Paulo Lins, que vem mesmo do bairro Cidade de Deus, houve uma abertura no mercado para esse tipo de literatura, que é espectacular.



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