Publicado em O Estado de São Paulo
por Wilson Alves Bezerra
Saber como fala um personagem é haver descoberto um destino, dizia Jorge Luis Borges. A constatação é uma boa chave para ler o romance de estreia do mexicano Alejandro Reyes, A Rainha do Cine Roma, escrito em português. Houve um tempo em que 'dar voz' a personagens marginalizados implicava uma espécie de reconstrução fônica da fala que contrastava com a língua bem falada do narrador, em terceira pessoa, o 'estilo esquizofrênico', na definição de Antonio Candido. Aqui, a estratégia é outra: aquele que fala, e escreve, faz parte da história narrada - Betinho, um moleque de rua já crescido, que conta sua infância e adolescência em Salvador, dá voz à narrativa.
Para os leitores do Brasil, essa voz tem sabor exótico: a cadência de oralidade proposta, além do registro da fala nordestina, traz elementos da sintaxe do espanhol - língua materna do autor -, resultando em expressões algo inesperadas ('morrer feita churrasco', por exemplo). A impressão é a de uma língua inventada, que lhe rendeu o segundo lugar no prêmio do grupo português LeYa, em 2008.
O maior mérito do livro é a reconstrução testemunhal da vida de rua do pequeno grupo de crianças nordestinas enjeitadas: do momento de sua saída, ainda na infância, da casa familiar à inserção no meio marginal. A narrativa de Reyes privilegia as dificuldades de sociabilidade das crianças no meio inóspito no qual contam, antes de tudo, com o próprio corpo como meio de sobrevivência e subsistência: na mendicância, nas lutas e na prostituição. O sexo surge ainda na infância, sob a forma de abuso do pai ou padrasto, e se torna a forma privilegiada de oferecer-se aos olhos do outro - adulto, estrangeiro, bem-sucedido - disposto a gozar (em todos os sentidos) de um corpo disponível, e dar a ele algum estatuto no grupo social. O próprio narrador se compraz, em alguns momentos, em colocar o leitor na condição de voyeur.
Nesse sentido, o livro é a narrativa dos corpos, nas diversas descrições de atos sexuais, incestuosos, homossexuais, grupais. Um dos personagens principais da trama é ele próprio um travesti, que procura na metamorfose física uma sorte de identificação consigo mesmo, completude e reconhecimento exterior, nunca encontrados. Interessante o Brasil marginal visto por este olhar, que recusa a síntese, e falado por vozes vacilantes, de destino incerto.
WILSON ALVES-BEZERRA É PROFESSOR DO DEPARTAMENTE DE LETRAS DA UFSCAR, TRADUTOR E AUTOR DE REVERBERAÇÕES DA FRONTEIRA EM HORACIO QUIROGA (HUMANITAS/FAPESP)
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