27 de maio de 2015

Digna Raiva - A Gramática da Ira


Por Alejandro Reyes

Quando eu li o manuscrito da Gramática da Ira do querido mano Nelson Maca, um ano atrás, acabavam de matar um amigo e companheiro, lutador jovem cheio de garra e de esperança, membro de uma comunidade indígena em resistência contra os projetos de morte cá em Chiapas, no México; assassínio covarde na porta da sua casa, na frente de um dos seus filhos.

Foi, portanto, com a Gramática da Ira que eu escrevi estas linhas em forma de carta, que agora, um ano depois, na véspera do aniversário da morte de Juan Vásquez, eu reescrevo. A leitura do livro do Maca naquele momento, como agora, foi a rima perfeita com a gramática do meu espírito: ira conjugada com amor, escrita com a caligrafia da dignidade; conjunção de indignações que atravessam o continente, vinculando cores e vidas e formas e resistência perante os racismos múltiplos e as tantas formas de desprezo e exploração.




A poesia do Maca me fez pensar no livro Mudar o mundo sem tomar o poder, de John Holloway:
No início é o grito. Nós gritamos. (…) Perante a mutilação de vidas humanas provocada pelo capitalismo, um grito de tristeza, um grito de horror, um grito de raiva, um grito de recusa: NÃO!
.
O ponto de partida da reflexão teórica é a oposição, a negatividade, a luta. O pensamento nasce da ira, não da quietude da razão……
O ponto de partida é esse. A Gramática da Ira se posiciona na contramão dos discursos sobre o país mestiço, o país mulato, o país único e harmonioso do brasileiro “cordial”… todos esses discursos que, no fundo, instituem, ao mesmo tempo que invisibilizam, o racismo e a exploração.

Diz Holloway que é preciso se segurar à negação de um mundo que percebemos como errado. É preciso se segurar a essa negação porque ela é sufocante demais e emudece o nosso grito. “Nossa fúria se alimenta constantemente da experiência, mas qualquer tentativa de expressá-la se bate com uma parede de algodão absorvente.” Eis a questão: como fazer para transformar esse grito num grito primordial capaz de dar pé à ação revolucionária, como fazer desse grito a semente do novo, da luta, dos outros mundos possíveis, quando os contra-discursos estão ali para nos emudecer como uma parede de algodão absorvente: o lenga-lenga da resolução amigável dos conflitos, da procura da “integração”, da civilidade cordial brasileira… Aí é que entra o “Manual do usuário da Gramática da Ira”. Nele, Nelson Maca renova a velha questão: harmonia ou conflito. A tão vendida suposta harmonia do povo brasileiro e o famoso “jeitinho” de resolver as coisas no jogo de cintura é duvidosa herança dos discursos feitos para nos amolecer, para evitar o ¡Ya Basta! que abre o caminho à libertação. Fundamental nesse sentido é a ênfase na Divergência. Porque se trata de divergir de tudo aquilo tido como “normal”, e nisso cabe não só uma, mas muitas divergências, todas as que compõem a riqueza do povo brasileiro/latino-americano/mundial e, sobretudo, dos que estão embaixo, nos porões, pisados pelos poucos lá de cima, sob as botas do racismo e da exploração e, no caso, evidentemente, o negro não só do Brasil, mas da diáspora toda. As constantes referências a Malcolm X, Fela Kuti, Aimé Cesaire, Frantz Fanon, lutadores e pensadores da divergência combativa, enriquecem a poesia com a reflexão e a memória histórica.

Gramática da Ira é o grito do NÃO que nos une, a digna raiva que se recusa a aceitar o horror deste mundo e que sustenta a criação e recriação desse NÓS da luta, e que nos permite não apenas aspirar a reverter os papéis, a trocar os lugares num edifício infame, mas a derrubar o edifício todo e reconstruir outra coisa. Perdoar, nunca. Mansidão, jamais. Mas acabar não apenas com aqueles que ocupam os andares de cima, mas com o prédio todo que eles mandaram construir com o nosso suor e, infelizmente, muitas vezes, com a nossa cumplicidade também.

Andares de cima nunca mais!


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