2 de setembro de 2010

Escritor mexicano Alejandro Reyes encontrou inspiração para livro na Bahia

Publicado em Correio Braziliense

Ronaldo Mendes

A RAINHA DO CINE ROMA Primeiro romance do escritor mexicano Alejandro Reyes.
Lançamento: Editora LeYa, 296 páginas. Preço médio: R$ 39,90

Reyes: 'Durante a escrita, passei horas andando pelas ruas, conversando com crianças, prostitutas e travestis' (Arquivo Pessoal
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Alejandro Reyes levava uma vida com nível um pouco acima da realidade da maioria dos imigrantes mexicanos nos Estados Unidos. Tinha um emprego na área de informática e uma renda razoável. Mas algo não ia bem. Não era falta de dinheiro, o que ele precisava era de inspiração. Foi quando o inquieto escritor largou a aridez norte-americana e atravessou o Atlântico, onde ficou na Europa, “vivendo de trabalhos aqui e ali”. No entanto, não eram aquelas mesas de café nas ruas das cidades europeias que o inspirariam. Foi no clima tropical brasileiro que Alejandro se encontrou. “Nesse momento, tinha um romance fermentando na cabeça e quis procurar um lugar tranquilo para escrever. Escolhi a Bahia porque já tinha lido muito a respeito e tinha muito contato com o Brasil”, conta em entrevista ao Correio.

Era 1994. O plano inicial do escritor era permanecer pouco tempo, apenas o suficiente para terminar o livro. “Descobri na Bahia uma ressonância em mim... e terminei ficando uma década”. Por isso, quem lê a história de amizade, companheirismo, descobertas, dramas, perdas, violência e drogas presentes em A rainha do cine Roma, romance de estreia de Alejandro Reyes lançado pela editora LeYa, se impressiona com o preciosismo de cada cena descrita. “Durante a escrita, passei muitas horas andando pelas ruas, conversando com crianças, prostitutas e travestis”, lembra. “Por um lado, porque precisava entender melhor o submundo da noite, das drogas, da prostituição e do transexualismo. Por outro, porque escrevê-lo em primeira pessoa, na voz de um menino morador de rua, implicava num grande desafio linguístico.”

Submundo
A história de Betinho e Maria Aparecida é carregada de melancolia, mas também de uma alegria e esperança comuns às crianças. Com problemas familiares e sendo vítimas de estupro na própria casa, os dois vão parar na rua. Foi nesse ambiente escuso que eles se conheceram e onde se tornaram grandes amigos. O Cine Roma do título é um cinema abandonado onde os meninos vivem boa parte da trama. Nesse turbilhão, enfrentam traficantes, policiais, bandidos, moradores de rua e a exploração de cafetinas. Mas a narrativa de Alejandro não se limita às duas crianças. Personagens secundários aparecem e somem da trama, entrelaçando-se à história, que se passa numa Salvador talvez invisível aos olhos dos turistas — e até mesmo dos moradores. Retratar a pobreza com poesia, sensibilidade e, acima de tudo, mostrar o lado humano dessas pessoas é o grande mérito de A rainha do cine Roma.

Reyes: "Durante a escrita, passei horas andando pelas ruas, conversando com crianças, prostitutas e travestis"

Incrível também a capacidade que o escritor tem de “atravessar” as fases dos personagens centrais. Ao mesmo tempo em que conta a história das crianças, Alejandro passa ao leitor a sensação de que Betinho e Maria Aparecida envelhecem a cada página virada. Mas nada fora do contexto. Tornarem -se adultos, neste caso, não é obra da natureza, mas do meio em que vivem. Uma questão de sobrevivência.
Doutorando em literatura latino-americana com tese sobre a literatura marginal, Alejandro desenvolve diversos projetos ligados à área social. “A relação entre o ativismo e a literatura é complexa. Ambos implicam um compromisso com o nosso mundo e uma posição crítica perante a injustiça e a desigualdade”, defende. O escritor, no entanto, alerta para o risco de o trabalho ser visto de uma outra maneira. “Isso representa um risco para a literatura, que pode facilmente se tornar panfletária ou de bandeiras e punhos levantados”, analisa. Antes de A rainha do cine Roma, Alejandro havia lançado os livros de contos Vidas de rua e Contos mexicanos. Atualmente, o escritor vive no estado mexicano de Chiapas, desenvolvendo trabalhos com as comunidades indígenas.

TRECHO DO LIVRO
“Ficamos quase um ano morando no largo do relógio de São Pedro, nessa nossa casa improvisada de papelão, deixando a vida correr, se virando pra comer e ganhar uns trocados. Vida complicada nas ruas, sabe... Vida de cão. Mas, naquele tempo, a gente nem pensava muito na questão. Era o que era, só isso. Vide de pivete, vida de meninos de rua. A gente curtia, só fazia o que nos dava na telha e não tinha ninguém pra ficar dizendo o que podia ou não podia fazer. Mas passávamos por muita ruindade. Sempre ligados, sempre de olho pra ninguém fazer alguma merda com a gente, sempre com fome, sujos, fedidos. È coisa. E de tanto o povo ficar tratando a gente como bicho, a pessoa começa a achar que é bicho mesmo, começa a agir como bicho, fazer qualquer besteira sem pensar em mais nada. É o cão. Mas o mais difícil é ficar centrado, não perder a cabeça, não se meter em merda que não dá em nada que preste. É... o diabo é esse: como fazer pra não virar bicho. O resto... é resto...a gente vai driblando. Se conseguir não virar bicho...”

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