10 de outubro de 2010

A ponte entre o humano e a condição de animal

Publicado no Diário do Nordeste


O espaço dos grandes centro urbanos, como abrigo às transgressões sociais, de há muito já se inscreve nos diversos gêneros, quer da prosa, quer da poesia. A partir do surgimento da literatura moderna, isso se fez presente com mais intensidade, o que, de certa forma, contribuiu para dissolver certas crenças em paz e bem-estar

O foco narrativo é conduzido em primeira pessoa, a internalização da leitura da trama se justifica plenamente por estar ela entregue a um dos protagonistas, Betinho - já morava na rua desde a tenra idade de sete anos, alimentando-se de pequenos furtos até o embate com coisas mais terríveis. Até que conheceu, também nos cenários das ruas, Maria Aparecida - uma frágil menina que, aos dez anos, após a morte da mãe, decide fugir de casa, uma vez que, antes, sofre abusos sexuais no espaço doméstico. Eles - os protagonistas - passam a ocupar um cinema abandonado: O Cine Roma; passam, então, a corporificar aquela metáfora de Cruz e Sousa: "Os miseráveis e os rotos / são as flores dos esgotos". No entanto, mesmo com tanto suplício, são capazes, assim, de cultivar fortes laços.

Considerando as tendências por que se movem as narrativas de ficção na pós-modernidade, ainda que o ponto de vista interno seja, predominantemente, conduzido pela personagem Betinho, tal não implica ausência de inúmeras vozes narrativas, numa multiplicidade de focos:"Maria Aparecida falava uma coisa, falava outras, contava tudo quanto é história, a gente ficava sem saber o que era verdade e o que era invenção de sua cabeça." (p.22) Com isso, o narrador passa também a interagir com o falar dessa personagem, ao mesmo tempo em que, apanhando um episódio aqui, outro acolá, ora como que tece uma colcha de retratos, ora com que manuseia as pedras de um estranho quebra-cabeças, vai, pouco a pouco, construindo aquela personagem aos olhos do leitor, sempre com tintas precisas e fortes de realidade.

O espaço da trama é a cidade de Salvador, na Bahia, - e não como não fazer uma referência ao romance "Capitães d´Areia", de Jorge Amado, ainda que o tratamento do tema, a composição romanesca, a construção das personagens e, ainda, o manuseio da linguagem sejam absolutamente distanciados. Se em Jorge Amado, evolam-se momentos de lirismo, se sentimentos de comiseração, se certos alumbramentos se façam presentes, aqui, a linha é outra: frases incisivas, curtas, cruas, numa plena harmonia com a atmosfera a envolver os excluídos.

Uma nota que merece registro é, sendo o espaço uma cidade da Bahia, não faltam traços singulares à cultura do povo baiano, tanto relativos à culinária, ao vestuário, a crenças, ritos e mitos: "A noite está uma lindeza, a lua brilha lá no alto, iluminando a gameleira e a mangueira, e o riacho que passa por perto, e cá dentro tem bandeirolas e folhas e laços vermelhos e um bocado de filhos e filhas de santo vestidos com as roupas de Xangô, Iansã, Ogum, Oxu, Iemanjá". (p23) E não faltam os foguetes a iluminar as mais variadas iguarias da festa.

Nos tempos do "Cine Roma", eles vislumbravam uma vida de gente rica, abastada, embora não acontecesse muita coisa. Até já consideravam coisa muito grande que eles morassem em um castelo, sim, um castelo, ainda que fosse um castelo abandonado, fedido, cheio de ratos e de baratas, mas, enfim, um castelo, em nada parecido com aqueles barracos sustentados por papelão. Ainda mais podiam curtir a praia, os amigos, as aventuras pela cidade; as coisas somente não se imprimiam como uma maravilha dentro dos limites dessa maravilha, por conta dos acessos de loucura, de descontrole, que tomavam conta de Maria Aparecida - nessas ocasiões, quem sempre levava a pior era o narrador, a quem, com desdém, insultava-lhe a condição de homossexual e também de abandonado de todos.

Mais à frente, a trama sofre uma transformação, e os protagonistas vão, rigorosamente, enfrentar a vida nas ruas, agora na condição exata de pivetes. Ficaram quase um ano morando no largo do relógio de São Pedro, com a casa, agora, improvisada de papelão. Eles deixavam a vida correr, virando-se com pequenos delitos, a partir dos quais conseguiam alguns trocados para a comida. No entanto, muito conscientes de que a vida nas ruas é mesmo uma vida de cão: "De tanto o povo tratar a gente como bicho, a pessoa começa a achar que é bicho mesmo, começa a agir como bicho, fazer qualquer besteira sem pensar em mais nada". Atormenta-lhes a ausência da resposta: como não tornar-se realmente um bicho?" A trama mostrará.

CARLOS AUGUSTO VIANAEDITOR

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